Atividades
promovidas pelos Centros Acadêmicos de cada curso reúnem alunos para que
troquem informações; o objetivo é evitar trotes violentos
Entrar em uma
universidade pode ser o sonho de muitos jovens. Todo o processo de escolha do
curso, o estudo para o vestibular, a maratona de provas podem ser recompensados
com o ingresso na instituição. Ao chegar ao local, uma avalanche de curiosidade
invade a cabeça dos estudantes. As dúvidas vão desde onde tirar as cópias do
texto indicado pelo professor até qual docente escolher para fazer determinada
disciplina. Para isso, os calouros contam com a ajuda dos veteranos.
Geralmente, essa integração entre novatos e alunos antigos se dá no famoso
trote. É nesse ritual de iniciação que os alunos se conhecem e trocam
informações.
O que acontecia na
Universidade de São Paulo (USP) não era diferente disso, até que em 1999, o
aluno recém-ingresso na Faculdade de Medicina Edison Tsung Chi Hsueh morreu
durante o trote. Ele foi jogado na piscina e, como não sabia nadar, morreu
afogado. O caso foi parar na Justiça, mas o processo foi arquivado em 2006 e
sem que ninguém tenha sido punido.
A morte de Edison ocorreu em fevereiro de 1999. Em dezembro do mesmo ano, o
Estado de São Paulo criou a Lei Nº 10.454 dispondo sobre a proibição de trote
que possa colocar em risco a saúde e a integridade física dos calouros das
escolas superiores como ação preventiva.
Diante das circunstâncias,
a USP resolveu tomar para si parte de responsabilidade, proibindo o trote na
instituição através da Portaria nº 3154 de 27 de abril de 1999 expedida pelo
reitor Jacques Marcovitch, que em seu artigo 2º estabelece que: “Não será
tolerado qualquer tipo de manifestação estudantil que cause, a quem quer que
seja, agressão física, moral ou outras formas de constrangimento, dentro ou
fora do âmbito da Universidade”, e no parágrafo único desse artigo que: “A
prática de tais atos será considerada falta grave, importando na aplicação de
penalidades de expulsão ou suspensão previstas no regime disciplinar da
Universidade, após processo administrativo, assegurados o contraditório e a
ampla defesa”. Além da Portaria, a USP quis colaborar com a integração entre os
alunos novos e antigos.
Para isso, os Centros
Acadêmicos foram convocados a criar a Semana de Calouros para recepcionar os
novatos. As aulas só são dispensadas para os alunos do primeiro e segundo anos.
Os alunos da Geologia, por exemplo, são recebidos com um café da manhã no
sábado que precede o início das aulas. No primeiro dia, têm uma aula inaugural
seguido de um batismo com tintas dentro do Centro Acadêmico, depois almoçam com
os veteranos e saem para arrecadar dinheiro para uma festa, realizada na
própria USP.
No dia seguinte, há uma mesa redonda com geólogos de todos os setores para que
os alunos tenham contato com a futura profissão. Na quarta-feira, vão ao Centro
Esportivo participar de jogos e na quinta-feira é realizada uma festa. Os
recém-chegados na Geologia também visitam as cavernas do Parque Estadual
Turístico do Alto Ribeira (Petar), em São Paulo.
Os alunos da
Escola de Comunicação e Artes (ECA) também recepcionam os "bichos"
(modo como os calouros são chamados pelos veteranos) de forma diferente. O
trote é brando: os novatos são pintados para recolher dinheiro. E para
que se integrem já na primeira semana com o local, os alunos antigos promovem
uma gincana em que os calouros têm que cumprir tarefas nos diferentes
departamentos da Escola de Comunicação, como o de Publicidade e Propaganda e o
de Música, por exemplo.
"Com esse
ECA-Tour que fazemos, os bichos conhecem cada local do nosso departamento que é
bastante amplo e muito dividido devido à quantidade de cursos. Durante essa
primeira semana, a gente acompanha cada atividade deles até para tirar dúvidas
e auxiliá-los quando necessário", explica Danilo Teixeira, aluno do
segundo ano de Publicidade e Propaganda e um dos colaboradores da comissão da
Semana de Calouros da ECA.
A Escola Politécnica
da USP, que possui 17 cursos distintos, dentre eles as engenharias Civil,
Mecânica, Elétrica e Química, também recebe os "bichos" com palestras
e atividades diversas na Semana de Calouros. Em 2012, por exemplo, no primeiro
dia o diretor da escola fez uma apresentação seguida de uma aula magna
ministrada por Roberto Setúbal, atual presidente do banco Itaú e ex-aluno da
Escola Politécnica.
"É comum todo
ano a scola trazer um ex-aluno que esteja bem-sucedido no mercado, como foi o
caso do Roberto este ano", explica Leon Boucher, responsável pela comissão
da Semana de Calouros da Escola Politécnica e aluno do terceiro ano de
Engenharia Civil.
Além das palestras, os calouros foram informados sobre as 30 modalidades
esportivas oferecidas pela Escola Politécnica e puderam conhecer cada ambiente
do Centro Acadêmico participando de uma caça ao tesouro. Em cada local que
chegavam, havia uma pista que levava a outro departamento. Assim, após conhecer
os lugares mais importante do centro, eles chegaram à festa promovida pelos
veteranos.
Mas a proposta de
recepção e integreção sem agressão nem sempre é respeitada por todos os
veteranos. É o que ressalta o professor Paulo Boggiani, do Departamento de
Geologia. Segundo ele, os calouros continuam recebendo apelidos e fazem
reclamações. “É uma situação muito perversa. A coisa fica sem controle e os
veteranos permanecem tendo atitudes questionáveis. A gente sabe que é um ritual
de iniciação. O aluno se sujeita porque sabe que depois vai fazer o mesmo com o
outro. É uma relação perversa e sado-mazoquista. Ele quer se pintar e aparecer
pra sociedade daquele jeito”, conta.
O próprio Paulo
participou do trote na Geologia, na época “mais tradicional, mais pesado”.
Segundo ele, naquela época o Centro Acadêmico era de resistência ao Regime
Militar e o trote fazia sentido como uma forma de expressão à repressão. Mas
hoje não há mais motivos para práticas vexatórias e de humilhação entre os
alunos. “O aluno trotista é o chefe assediador do futuro”, finaliza.
No primeiro
semestre de 2012, o Disque-trote, serviço criado na USP para receber denúncias
de estudantes vítimas de trotes abusivos registrou 17 reclamações.